sexta-feira, 14 de março de 2014

Arquivo A.S.N.O: Plus Ultra!


Chovia como se o mundo esteve em desalinho com a humanidade. Nada podia ser mais sombrio que uma noite sem lua, onde o breu dominava cada canto escuro da cidade. Nestes casos, é tão simples que os corações mais antiquados e fantasiosos façam analogias entre, os transeuntes estranhos e forças sobrenaturais. Eu estava encharcado e já passava das duas da manhã, tudo parecia ser além da minha compreensão e senso de realidade, barulhos estrondosos faziam-se sem explicação e repentinamente, e por mais altos e repetitivos que fossem, ninguém saia, ao menos, as janelas para saber o que acontecia. Talvez fosse eu, talvez eu estivesse delirando um pouco. Minha vida pessoal estava completamente destruída. Minha filha acabara de morrer, minha esposa me culpava pelo fato. E eu sabia, e ela também, que ninguém tinha culpa. Mas como explicar fatos a uma mãe sem razão pra ser feliz? Como chamar a razão, alguém que perdeu seu bem mais precioso, sua maior alegria? Não posso culpá-la. Mas eu não tenho ninguém. Não tenho família, não tenho mais meus amigos. Sou só eu. Com o aluguel atrasado, com um emprego subumano, sem dinheiro pra nada e com fome. Não sei de onde escrevo este relato, tudo é tão claro aqui... Tão calmo. As vezes.

Ainda vivemos sobre o tenebroso fantasma da tortura e do desaparecimento sem vestígios e injustificado, ainda vivemos sobre a influencia de ídolos infantis de anos atrás, com ligação com algum tipo de força demoníaca. O medo ainda era uma constante na vida das pessoas. A surpresa deixara, a muito, de ser algo prazeroso. Ninguém queria entrar naquelas vans, naqueles furgões escuros e com aquelas bestas infernais dentro. Mas eles não faziam mais isso. Novos tempos. Todavia, qualquer veículo com essas características, era considerado potencialmente assustador e perigoso.

Por isso, enquanto caminhava com toda atenção que se podia ter, e com aquele ar sinistro que pairava, não é de se estranhar que corri como um liberto do cárcere, quando aquele carro parou ao meu lado. Consegui dobrar a esquina e acreditei tê-lo despistado. Engano. Como que de forma espectral, ele surgiu de uma hora pra outra, e não pude mais fazer nada. A não ser esperar.

 Primeiro foi o farol, vindo de trás, e projetando minha sombra no prédio a frente. Então, aos poucos, como se o motorista gostasse da encenação, passou devagar ao meu lado. A dianteira, com alguns amassados surgiu devagar, depois a roda, algo vermelho quase negro escorrendo viscosamente, a janela do carona estava fechada e escura como a noite, logo atras a porta de correr se abriu, bem a minha frente. Uma cólera e ao mesmo tempo uma paralisia se apossaram do meu corpo. Tremia violentamente, e suava muito. Cada músculo se contraia ao ponto de uma cãibra. Meus olhos arregalados gravaram aquela imagem pro resto da minha vida. Na primeira fresta que surgia com a abertura da porta pude ver o que me esperava. De dentro, do escuro profundo e infinito daquele carro do inferno, surgiu a figura desfigurada de um palhaço com dentes amarelados e um sorriso horrendo estampado no rosto. Sua maquiagem estava disforme e borrada, seus olhos alucinados de satisfação, a pele toda cortada e com pontos recém queimados. Não tinha cabelo e algumas partes da cabeça estavam em carne viva. Seu macacão era de uma oficina, e estava cheio de listras vermelhas, tingidas com a mesma coisa viscosa do pneu. Além disso, tinha um canivete em uma mão, e na outra um cutelo. Um cheiro acre invadia meus sentidos, tinha algo de carniça, e era difícil saber se vinha da figura apavorante, ou de dentro do carro. Provavelmente de ambos.

Ele foi mais rápido do que eu podia imaginar pra uma figura tão decrépita. Pelo colarinho, me jogou pra dentro do vagão, enquanto ora sim ora não, esfaqueava uma pequena parte do meu braço, ou perna. Ele tinha plena consciência do que estava fazendo, e não queria que eu morresse tão rápido. A lâmina do canivete era fria e brilhava com a mínima luz que entrava pela janela, e a cada curva que o carro fazia, aquele desgraçado repetia em um movimento parecido, na minha barriga. Eu lutava e me debatia, mas habilmente ele fugia dos meus socos e chutes convulsionais. Não foi difícil me amarrar e amordaçar. Era claro agora pra que servia o cutelo... Num movimento rápido e muito preciso, ele decepou meu dedão esquerdo. E como se não bastasse aquela figura horrenda, ao seu lado, uma mulher surgiu como se houvesse um compartimento onde estivesse escondida.

Seu rosto apesar de belo, não tinha vida, seus olhos eram espantosamente opacos e destituídos de qualquer brilho. Os cabelos negros e revoltos brincavam em meu rosto, e possuíam aquele cheiro mórbido de rosas. O corpo esbelto era marcado por um vestido branco que se camuflava na cor da sua pele. Tudo naquela figura conseguia me apavorar ainda mais que o palhaço, aliás, este se preparava para arrancar meu outro dedão, enquanto eu tentava gritar e me perguntava o que eles queriam e porque eu, mas o insano não tem explicação. No outro movimento rápido, perdi o dedão direito. E enquanto a dor me dominava e tudo parecia não ter fim, a mulher se debruçou sobre mim, e seu rosto se transformou. Dentes pontiagudos surgiram, dois olhos vermelhos tomaram conta do seu rosto, enquanto um sorriso macabro lhe estampava a face. Seus dedos ficaram mais longos e sujos de terra, o cabelo embranqueceu completamente e cresceu até seus pés. Ela segurou a minha cabeça com as duas mãos, e subiu sobre mim de cócoras com os pés em cima da minha barriga. Sua língua era do tamanho de um antebraço e estava muito quente, entrou na minha boca e começou a me asfixiar. Eu sentia aquela carne nojenta na minha garganta e meus sentidos desaparecerem. Mas antes que a morte chegasse e colocasse um fim naquilo, ela arrancou um dos meus olhos com a língua. "Você não pode ver tudo! Você não merece ver tudo. Você vai sucumbir, insano!"

A dor já era insuportável, sentia que havia perdido muito sangue e estava deixando a luz da vida. Meus sentidos estavam confusos e exaustos. Aquela forma horrível soltou um grito agudo e longo, medonho e apavorante de uma forma indescritível. Foi a última coisa que ouvi antes de desmaiar.

...

Aqui é realmente muito branco. Quando acabo de acordar não consigo nem manter meus olhos abertos, tamanha a claridade. Eu não sei o que é. Não consigo falar muito. Sinto que minha língua está sempre queimada por café quente. As pessoas aqui também são caladas e taciturnas. Acredito que seja um hospital. Mas é horrível. É sujo, e desagradável. E homens com crachás sempre trazem remédios. Esses dias ouvi gemidos, de alguém tendo prazer. Me encaminhei na direção mancando (era difícil manter o equilíbrio sem os dois dedões), e vi por um espaço na porta, um homem atras de uma mulher em movimentos repetitivos. Ela tinha uma cara opaca e sem vida. Como se estivesse em eterno estado de desânimo. Fiquei por minutos olhando atônito para aquela cena. O homem estava claramente abusando dela. Pensei em fazer algo, mas ainda estava petrificado. Subitamente ela olhou pra mim! Sua expressão mudou radicalmente, e ela assumiu aquela cara horrenda de olhos vermelhos, sorriso maníaco e cabelos brancos longos. Gargalhou, enquanto dizia: "Um dia será você. Um dia será você! Não gostou do que fiz com seu olhinho, mas um dia será você"! O homem parecia não se dar conta do que a mulher era e o que estava dizendo. Seu estado era de êxtase. Ela o jogou por cima da mesa que estava debruçada, e se sentou sobre ele. Mas não como fez comigo. Ela estava tendo prazer com ele. E como um inseto arrancou-lhe cabeça, enquanto urrava no clímax daquela insanidade.

Caio Terciotti.
São Caetano do Sul, 2014.


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