sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Arquivo A.S.N.O: "Os Buracos da Máscara", Jean Lorrain.



Jean Lorrain foi um dos melhores autores fantásticos do Séc. XIX. E olha que pra se destacar com esse gênero nessa época, tinha que ser realmente bom. Autores como Edgar Allan Poe, Sir Conan Doyle, Walter Scott, Joseph Sheridan Le Fanu, Hans Christian Andersen, Charles Dickens, Robert Louis Stevenson, Rudyard Kipling, Herbert G. Wells... Eram algumas das grandes mentes que escreveram de tudo um pouco, mas tinham no coração um canto dedicado ao exótico, sobrenatural, sinistro, mórbido!

Não é difícil imaginar época mais propícia para esse gênero literário. E muitos contos e romances caíram no gosto popular, já no séc. XIX e, também, no séc. XX. Não a toa, muitas foram as adaptações de sua estórias para outras mídias, principalmente, o cinema.

Portanto, para aqueles que querem ver o Carnaval com outros olhos. Sob uma perspectiva ao mesmo tempo excitante e sombria, eu recomendo a leitura desse conto maravilhoso! Boa leitura e divertimento!
_________________________________________________________________________________
Por Jean Lorrain
"O encanto do horror só tenta os fortes"
Baudelaire

"Já que você assim quer, disse-me o meu amigo De Jakels, seja; arranje um dominó bem elegante, de cetim negro, calce escarpins com meias de seda preta, e espere-me em sua casa, terça feira, às 10 horas e meia, mais ou menos, que irei buscá-lo".

Na terça-feira seguinte, envolvido nas dobras barulhentas de uma longa murça, usando máscara de veludo com babado de cetim, presa atrás das orelhas, eu esperava meu amigo De Jakels, no meu quarto à Rua Taitbout, aquecendo, nas brasas da lareira, os meus pés irritados e tiritantes, sob o contacto inacostumado da seda. Lá fora, as buzinas e os gritos exasperados de uma tarde de Carnaval chegavam até mim.

Bastante estranho, e mesmo inquietante, ficar uma forma mascarada solitária, em vigília, reclinada numa poltrona, no claro-escuro deste rés-do-chão atravancado de bibelôs e atenuado pelas tapeçarias; e nos espelhos pendurados nas paredes dançavam as flamas altas de uma lâmpada de petróleo e vacilavam as duas velas muito brancas, esbeltas como funerárias, e De Jakels não chegava! Os gritos dos mascarados ressoavam ao longe, agravando ainda mais a hostilidade do silêncio: as duas velas queimavam tão direitas que um enervamento acabou por me tomar e, de repente, assustado diante destas três luzes, levantei-me para apagar uma. Neste momento, um dos reposteiros afastou-se e De Jakels entrou.

De Jakels? Eu não tinha ouvido tocar campainha nem abrir a porta. Como se teria ele introduzido no meu apartamento? Pensei nisso muitas vezes, depois; enfim, De Jakels estava lá, diante de mim. De Jakels? Isto é, um longo dominó, um grande vulto escuro, velado e mascarado, como eu.

– Você está pronto? – interrogava a sua voz, que eu não reconheci, tanto estava mudada. – A minha carruagem está aí; vamos partir!

A sua carruagem, que eu não tinha ouvido rodar nem parar diante de minhas janelas. Em que pesadelo, em que sombra e em que mistério tinha eu começado a descer?

– É o seu capuz que lhe tapa os ouvidos; você não tem o hábito da máscara – pensava, em voz alta. De Jakels, que havia adivinhado meu silêncio: ele tinha, então, esta noite, todas as predições e, levantando o meu dominó, assegurava-se da excelência das minhas meias de seda e dos meus delicados sapatos.

Este gesto tranquilizou-me; era bem De Jakels, e não um outro, que me falava sob esse dominó. Um outro não teria tido o cuidado de verificar se eu tinha cumprido a sua recomendação de há uma
semana.

– Está bem! Partamos! – recomendava a voz; e, num sussurro de seda e cetim que se amassa, metemo-nos pelo corredor, cuja porta de entrada se assemelhava a dois enormes morcegos em voo, subitamente, levantados acima dos nossos dominós.

II

Para onde rodávamos agora, amontoados na sombra deste carro extraordinariamente silencioso, cujas rodas não faziam barulho, assim como os cascos dos cavalos sobre a calçada de madeira das ruas e o macadame das avenidas desertas? Para onde íamos ao longo destes cais e destas margens iluminadas, aqui e ali, pela lanterna extravagante de um antigo lampião? Havia já muito tempo tínhamos perdido de vista a fantástica silhueta de Notre Dame, perfilando-se do outro lado do rio, sob um céu de chumbo. Cais Saint
Michel, cais da TornelIe, cais de Bercy; estávamos longe da Ópera, das Ruas Drouot, de Peletier, e do centro. Não íamos mesmo a Bullier, onde os vícios vergonhosos têm os seus assentos e, escondendo-se sob as máscaras, se arrastam quase demoníacos e cinicamente confessados, nesta noite de terça-feira de Carnaval.

O meu companheiro calava-se. À margem deste Sena taciturno e pálido, sob os arcos das pontes, de mais em mais raras, o comprimento deste cais orlado de grandes árvores magras, de galhos afastados para os céus lívidos, como dedos da morte, um medo irracional me tomava, um medo agravado pelo silêncio inexplicável de De Jakels; cheguei a duvidar de sua presença e acreditava-me junto de um desconhecido. A mão do meu companheiro segurava a minha e, embora mole e sem forca, apertava - a como num torno, que me esmagava os dedos... Esta mão de força e de vontade matava-me as palavras na garganta, e eu sentia, sob o seu aperto, toda veleidade de revolta quebrar-se e dissolver-se em mim.

Nós rodávamos, agora, fora das fortificações, por grandes caminhos bordados de sebes e de sombrios frontispícios de negociantes de vinho, tabernas de barreiras havia longo tempo fechadas; nós corríamos sob a lua que acabou por empurrar uma multidão flutuante de nuvens, e parecia espalhar, sobre esta equívoca paisagem de subúrbio, uma saraivada de sal; neste momento, pareceu-me que os cascos dos cavalos soavam pelo chão dos caminhos, e que as rodas do carro, deixando de ser fantasmas, gritavam nos pedregulhos e pedras do caminho.

– É lá! – murmurava a voz de meu companheiro. – Chegamos. Podemos descer, – e, como eu balbuciasse um tímido: "Onde estamos"? – explicou:

– Barreira da Itália, fora das fortificações. Tomámos o caminho mais longo, porém o mais seguro, e voltaremos por outro, amanhã cedo.

Os cavalos pararam; De Jakels largou-me para abrir a portinhola e estendeu-me a mão.

III

Era uma sala muito alta, de paredes rebocadas de cal, janelas interiores hermeticamente fechadas e, em todo o comprimento da sala, as mesas com taças de folha de flandres. Seguras por correntes. No fundo, elevado de três degraus, o balcão de zinco, atravancado de licores e garrafas, com etiquetas coloridas de legendários negociantes de vinhos; dentro, o gás assobiava fortemente; a sala, em suma, mais espaçosa e limpa, com um balcão bem afreguesado.

– Sobretudo, nem uma palavra a quem quer que seja. Não fale a ninguém e não responda a quem lhe falar. Logo verão que você não é um deles e poderemos passar um mau quarto de hora. A mim conhecem-me.

E De Jakels empurrava-me para a sala. Alguns mascarados bebiam, espalhados. À nossa entrada, o dono do estabelecimento levantou-se e, pesadamente, arrastando os pés, veio ao nosso encontro, como para nos impedir a passagem; sem uma palavra, De Jakels levantou a barra dos nossos dominós e mostrou-lhe os nossos pés, calçados de finos sapatos: era o "Abre-te, Sésamo"!, sem dúvida, do estranho estabelecimento. O patrão voltou, pesadamente, ao seu balcão e eu apercebi-me, coisa bizarra, que ele também estava
mascarado, mas de uma grosseira máscara, burlescamente avermelhada, imitando um rosto humano.

Os dois garçãos de serviço, dois colossos, de mangas de camisas reviradas sobre os bíceps peludos de lutadores, circulavam em silêncio, também sob a mesma horrível máscara. Os raros mascarados que bebiam assentados em torno das mesas, estavam com máscaras de veludo e cetim. Salvo um enorme couraceiro em uniforme, espécie de bruto, com maxilar pesado e de bigodes ruivos, sentado à mesa, perto de dois elegantes dominós de seda malva e que bebiam, com o rosto descoberto, de olhos azuis, já vagos, nenhum dos seres encontrados ali tinha rosto humano. Num canto, dois grandes soldados de túnica, bonés de veludo, fantasiados de cetim negro, intrigavam pela sua elegância suspeita; pois as suas túnicas eram de cetim azul pálido e das barras de suas calças, novas demais, emergiam estreitos artelhos de mulher, calçados de seda e de escarpins; eu, como que hipnotizado, contemplaria ainda este espetáculo se De Jakels não me tivesse empurrado para o fundo da sala, para uma porta envidraçada e fechada por uma cortina vermelha.

"Entrada do baile", estava escrito por cima desta porta, em letras enfeitadas por um aprendiz de pintor; um polícia municipal montava guarda perto. Era, ao menos, uma garantia, mas, passando, toquei-lhe a mão e apercebi-me que ele era de cera, de cera assim como o seu rosto rosado e de bigodes postiços eriçados, e tive a horrível convicção de que o único ser cuja presença me tinha reassegurado neste lugar de mistério, era um simples manequim.

IV

Quantas horas errei sozinho no meio daqueles silenciosos mascarados, num alpendre abobadado qual uma igreja, – e era uma igreja, com efeito, – uma igreja abandonada, com esta vasta sala de janelas em ogiva, a maior parte ou a metade com paredes, entre as suas colunas mal pintadas com uma camada amarelada, onde se embutiam flores esculpidas dos capitéis.

Estranho baile, onde não se dançava, e onde não havia orquestra! De Jakels tinha desaparecido; estava eu só, abandonado no meio dessa multidão desconhecida. Um antigo lustre de ferro forjado chamejava, alto e claro, suspenso na abóbada, iluminando lajes cheias de pó, da qual certas inscrições, talvez, recobriam tumbas; no fundo, no lugar onde certamente devia reinar um altar, manjedouras e suas grades corriam à meia altura do muro, e, nos cantos, um montão de arreios e cabrestos esquecidos. A sala do baile era uma estrebaria. Aqui e ali, grandes espelhos de cabeleireiro, emoldurados de papel dourado, transmitiam, de um a outro, o passeio silencioso dos mascarados, isto é, todos se mantinham sentados, enfileirados, imóveis, aos dois lados da antiga igreja, sepultados até os ombros, nos antigos assentos do coro. Eles conservavam-se lá, mudos, sem um gesto, como que afastados no mistério, sob longas túnicas prateadas, de um prateado baço ou reflexo morto; pois não havia mais dominós, nem blusas de seda azul, nem Colombinas, nem Pierrots, nem disfarces grotescos, mas todos os mascarados eram iguais, vestidos com a mesma roupa verde, de um verde descorado qual enxofre de ouro, com grandes mangas negras, e todos encapuçados de verde escuro, com os dois buracos no capuz da túnica prateada.

Dir-se-iam faces gretadas de leprosos dos antigos lazarentos e as suas mãos, enluvadas de negro, levantavam uma haste de lírios negros, de folhas pálidas; os seus capuzes, tal como o de Dante, estavam coroados de lírios negros. Todas estas cogulas (túnicas) se calavam numa imobilidade de espectros e, acima das suas coroas fúnebres, a ogiva das janelas recortava-se em claro, sobre o céu branco da lua, toucando-as com uma mitra transparente. Eu sentia a minha razão obscurecer pelo espanto; o sobrenatural envolvia-me: aquela rigidez, o silêncio de todos os seres mascarados! Quem eram eles? Um minuto de incerteza a mais, seria a loucura! Eu não aguentava mais e, com a mão crispada pela angústia, avançando para um dos
mascarados, levantei-lhe bruscamente a cogula. Horror! não havia nada, nada! Os meus olhos esgazeados não encontraram senão os buracos do capuz; a roupa, o cabeção, estavam vazios. Aquele ser, que vivia, não era senão sombra e nada mais.

Louco de terror, arranquei a cogula do mascarado vizinho, assentado no coro: o capuz de veludo verde estava vazio, vazio também o dos outros mascarados, assentados ao longo dos muros. Todos tinham rostos de sombra, todos eram nada! E o gás passava mais forte, quase assobiando na sala alta; pelos vidros quebrados da ogiva, o luar deslumbrava, quase cegando; então, um pavor me invadiu, no meio daqueles seres cavernosos, nas vãs aparências de espectros, uma dúvida terrível me apertou o coração, diante de todos aqueles dominós vazios.

E se eu também estivesse igual a eles, se eu também tivesse cessado de existir, e se sob a minha máscara não houvesse nada, nada de nada? Precipitei-me para um dos espelhos. Um ser de sonho levantava-se diante de mim, encapuçado de verde escuro, coroado de lírios negros, mascarado de prata. E aquela máscara era eu! Pois reconheci o meu gesto na mão que levantava a cogula e, pasmado de medo, soltei um grande grito, visto que nada havia sob a máscara de pano prateado; nada no oval do capuz, senão o vazio do estofo arredondado; eu estava morto, e eu...

– E você tomou éter de novo? – censurava ao meu ouvido a voz de De Jakels. – Singular ideia para
enganar o tédio, enquanto me esperava!

Eu estava estendido no meio de meu quarto; o corpo escorregara sobre o tapete, ficando a minha cabeça pousada sobre a poltrona; De Jakels, em traje de noite, sob uma fantasia de monge, dava ordens febris ao meu criado de quarto, embasbacado, enquanto as duas velas acesas chegavam ao seu fim, estalando, e me acordavam... Era tempo!

Paris, 1900.
______________________________________________________________________________

Esperamos que tenham gostado e que o conto tenha provocado a reflexão! Carnaval há em várias partes do mundo, e cada lugar possui suas peculiaridades. Portanto, não se prendam a valores culturais enraizados. Abram a mente! Tentem vivenciar um pouco disso. Ao invés de irem a uma balada qualquer, deem um pulo com os amigos até a Vila de Paranapiacaba... A noite...

Se conseguirem... Boa noite!

Por Caio Terciotti - Murmúrios do diastema de um daltônico -

Nenhum comentário:

Postar um comentário