quinta-feira, 24 de julho de 2014

"Eu admiro Chicó. Eu sou um mentiroso", Suassuna.

    Eu tinha 9 anos, e dormia constantemente na casa da minha avó. Os filhos de seus vizinhos eram meus amigos, e a praticidade de passar o fim de semana ou as férias por lá era grande. Além do mais, desde sempre dona Dulce foi uma segunda mãe, cuidou de mim quanto moleque e continuou até falecer. Era, de fato, uma grande mulher. Acontece que nessa época, estreou na TV a microssérie que adaptava a peça "O Auto da Compadecidade", do nosso querido Suassuna. Foi uma época de glória, minha avó e eu acompanhamos a "novelinha" inteira. Mas, o último capitulo eu perdi. Por algum motivo, eu não consegui acompanhar o desfecho daquela história. Minha avó diria depois que foi um dos finais de "novela" que mais a emocionou. Quando o filme foi lançado e depois transmitido na TV eu pude ver o final de João Grilo, sua conversa com o diabo, com a morte, com Jesus e com Nossa Senhora. Foi então que entendi o que aquilo significava pra minha avó, católica e devota de Nossa Senhora. Aquilo significava tudo que ela acreditou.

  Suassuna sabia como o seu povo pensava, e o que eles sentiam. Não só dos nordestinos, mas de todos os camponeses pobres do país que se agarram a religião para ter um consolo na miséria. Não é fácil pra nós a tortura de um grande centro urbano, e com todas as nossas privações. Não podemos imaginar o que é, portanto, a fome, a sede, a impotência de quem vive no sertão. E Ariano conhecia bem sua literatura também, ele sabia o que João Cabral de Melo Neto estava dizendo em Morte e Vida Severina e sabia o que ele mesmo estava dizendo com sua obra.

  O escritor paraibano passou boa parte de sua vida percorrendo o país e fazendo a sua "Aula espetáculo", e quando eu já não tinha mais contato com sua obra e só o filme de Guel Arrais me era memorável, ele anunciou sua passagem por Santo André, no ABC Paulista, para se apresentar e continuar com a missão que ele acreditava ter sido a ele incumbida. Nesse momento, uma oportunidade me foi apresentada. A possibilidade de abrir a palestra dele com algum tipo de performance. "Deus, como?". Juliana Grillo havia me apresentado para a musicista Rosanaa Schoeps, que sugeriu meu nome para fazer a abertura. (Amo vocês!).


De tudo que li, e tudo que conhecia, nada me parecia viável. "Fazer uma passagem de sua obra? Talvez. O Auto da Compadecida? Não. O Santo e a Porca? Não. O que fazer? Por onde começar? Quanto tempo gastar nisso?" Tudo parecia incerto e qualquer erro seria desastroso e potencialmente ridículo. Então assistindo pela 2ª vez uma de suas aulas eu entendi uma coisa: depois de sua esposa, a poesia era uma das coisas que Suassuna mais amava. Ótimo! Vou apresentar dois poemas dele. Ótimo! Quais? Ahhhhhh... Frustração. O homem fundou o movimento Armorial, era um grande dramaturgo, romancista. Tinha uma visão muito ampla do significado de artes. Como eu poderia não saber o que apresentar? Mas, de repente, eu sabia o que fazer. O dramaturgo tinha sua grande paixão, a esposa. E tinha um grande respeito pela morte. E assim meu papel estaria cumprido. Selecionei um poema que ele havia feito pra ela, e que estava em uma biografia autorizada e simples. E depois selecionei um poema do romance d'A Pedra do Reino que tratava sobre a morte, a morte Caetana. 

"O único jeito de aceitar essa maldita é pensando que ela é uma mulher linda"

  Foi destacado um local no enorme palco do teatro de Santo André, para imprensa, artistas e convidados, que assistiriam dali, enquanto a palestra seguia seu curso. Enquanto eu esperava a hora de entrar, diversos políticos regionais foram ao palco e se apresentaram. Um bibliotecário gente fina fez uma abertura utilizando a frase de Euclides da Cunha: "O Sertanejo é, antes de tudo, um forte." E depois chamou Suassuna ao palco. Pensei: "Ok, esqueceram que eu ia apresentar. Sem problema!" No fundo foi até um alivio. Eu tremia igual vara verde. O teatro estava lotado! Absurdamente cheio. As pessoas sentaram nas escadas ou ficaram em pé porque não tinha mais acentos. 




  Minha calma estava se estabelecendo, visualizei o ridículo da minha situação, quase uma arrogância. Mas então eu percebi, a apresentação não havia terminado e o bibliotecário anunciou uma performance antes do inicio da palestra. Eu entendi. Declamaria os poemas na frente de seu autor. Um dos maiores gênios da literatura nacional, o grande símbolo da obra nordestina, o autor que marcou minha infância, Ariano Suassuna. E me chamaram... "Puta que pariu!", pensei. "É sério isso? Cês tão de brincadeira! Na frente dele????" O teatro estava um silêncio só. Ninguém emitia um único som... E ele estava ali, a três metros da minha cadeira. Levantei, tremendo, e caminhei para o centro do palco sem olhar para os lados. Me apresentei, com uma dor estranha no braço (qual o braço que dói durante o enfarto?), e quando eu terminei, fui até ele, o cumprimentei e saí... As lágrimas! Tudo que aquilo significava caiu sobre mim de uma vez enquanto saia do palco. Minha avó, minha mãe e minha irmã. As pessoas que estavam comigo, as pessoas que me ajudaram sempre. E um herói, Ariano Suassuna é, acima de tudo um herói. Pelo menos pra mim, que fui salvo por sua obra em um dos momentos mais difíceis que passei. 

P.S.: Quando soube de sua morte, logo pensei em Dona Zélia, sua esposa. Mas acredito que ela tenha uma grande compreensão, e vá conseguir superar. Seu marido era um ser humano incrível, o que mais faz acreditar que ela só poderia ser mais incrível ainda.


Por Caio Terciotti -  Eu decidi homenagear o escritor de uma forma diferente. Mostrando sua importância na minha vida. Não que eu seja grande coisa, mas só assim eu poderia  expressar por completo o que essa perda significa pra mim.

Frases marcantes:

"Porque, veja bem, eu sou feio. Mas eu não culpo a velhice não viu, minha gente. Isso eu sou desde sempre." (Essa frase sofria variação a cada palestra).

"Oh, meu filho, tu não fez uma poesia. Tu constatou um fato".

"Sempre me vem com estatística, tentando provar que viajar de carro é mais perigoso, que as estradas são cheias de buracos. E eu respondo: 'Pior é no avião que o buraco acompanha a gente o tempo todo'" 

"Quem é John Lennon?"

2 comentários:

  1. Parabéns pelo texto. Naquele momento a indicação teve o peso a sua paixão pelo trabalho e pela pessoa dele, mas principalmente pela pessoa que você é. Você provou ser merecedor e com certeza deixou uma grata lembrança na memória de Suassuna e sua esposa.

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    1. Obrigado, Rosanaa. Vc não sabe o que aquilo significou na época pra mim, e o quanto ainda significa! Obrigado.

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